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1. [Filosofia] De um ponto de vista filosófico, o
essencialismo remete para a crença na existência das coisas em
si mesmas, não exigindo qualquer atenção ao contexto em que
existem. Uma posição essencialista distingue-se facilmente de
uma posição dialéctica: a primeira pressupõe a reflexão de uma
coisa em si mesma, a segunda privilegia a reflexão de uma coisa
em relação com outras; a primeira confia em que as qualidades de
uma coisa  revelam-se a si próprias, a segunda defende que as
qualidades de uma coisa devem ser sempre discutidas em confronto
com outras qualidades e com outras coisas, procurando-se sempre
uma explicação lógica para que uma dada qualidade exista ou
predomine. O oposto do essencialismo filosófico é o relativismo.
Neste confronto, ambos os termos são utilizados com sentido
pejorativo e repelem-se mutuamente. O confronto só ameniza
quando se substitui o relativismo pela variante eufemística

relacionismo. Em suma, o essencialismo contempla a coisa em
si mesma; o relativismo exige a conformidade da coisa com aquilo
que compõe o mundo que a circunscreve. Se substituirmos a
palavra coisa pela palavra texto, teremos
encontrado o significado do essencialismo para a literatura.

 

2. [Poesia] Uma forma particular de platonismo defende
primeiro o essencialismo para o caso dos objectos físicos que
são cópias imperfeitas das suas formas abstractas — o
essencialismo seria assim a existência noumenal ou
indecomponível das coisas. Numa outra perspectiva metafísica,
advoga-se que alguns objectos têm qualidades que são imutáveis e
eternas, jamais ficando sujeitas à erosão do tempo; essas
qualidades são fundamentais para a existência dos objectos e
estão expressas naquilo que os define. Assim, um enunciado como
"o esplendor do Sol" é uma evidência objectiva, é a definição da
essência do Sol, pelo que não tem qualquer valor
dialéctico. Este tipo de enunciado pode ocorrer em contexto
literário, como no exemplo que nos dá Sophia de Mello Breyner
Andresen:  "O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre as
duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o
lugar da Balança onde o equi­líb­rio do homem com as coisas é
medido – quase me cega a per­feição como um sol olhando de
frente." ("As grut­as", Livro Sexto, 1962). Este tipo de
poesia é essencialista por definição, o que aliás a Poetisa
justifica com uma tese igualmente essencialista: "a poesia não
explica, implica" (palavras ditas oralmente quando interpelada
sobre uma questão crítica). A minha tese vai num sentido
contrário: se não compete à poesia explicar-se, é
obrigação da crítica explicar o seu sentido. O "implicar" da
poesia é apenas uma forma de dizer a sua essencialidade. A
diferença entre um enunciado como "o esplendor do Sol" e "O
esplendor poisava solene sobre o mar" é o facto da frase de
Sophia se tratar de uma evidência subjectiva, aquilo que define
o tipo de poesia que gostaria de desmistificar como grande
poesia
. O essencialismo poético que resulta quer de
evidências subjectivas quer de evidências objectivas (para o
caso daqueles poetas que nem sequer são capazes de produzir
enunciados subjectivos) é, a meu ver, análogo ao essencialismo
do tipo wittgensteiniano. Sem entrar na questão delicada de
saber o que é grande e o que é pequeno em literatura, questão
que talvez nem pertença a nenhuma poética, a diferença entre a
grande poesia e a pequena poesia está precisamente
no facto de a primeira ter valor dialéctico, isto é, poder ser
discutida, e a segunda não o ter (apenas "implica", diz Sophia).
Uma poesia anti-essencialista como a de Fernando Pessoa, por
exemplo, tem valor dialéctico porque se atreve a definir a
própria poesia tanto como se atreve a produzir enunciados
subjectivos complexos; por comparação, a crítica de Sophia tem
sido fundamentalmente essencialista, não discutindo nunca a
natureza das suas essências, mas assumindo invariavelmente as
suas "implicações". Ora, em crítica literária o que vale é as
explicações e as deduções que arriscamos perante um texto. Uma
crítica anti-essencialista será então aquela que não teme
definir o objecto que estuda, nunca esquecendo que toda a
definição é o princípio de um problema. A diferença entre um
poeta essencialista e um poeta anti-essencialista pode ser
ilustrada comparando o enunciado subjectivo-essencialista de
Sophia com o enunciado subjectivo-anti-essencialista de
Fernando Pessoa: "O
esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes /
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…" 
("Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia"
(8-3-1914), in "Chuva oblíqua", 1915). Em regra, um poeta
essencialista trabalha com um número limitado de predicados, não
estabelece relações complexas entre as coisas observadas e não
escreve nunca nas entrelinhas.

 

3. [Filosofia da linguagem]

Para os filósofos da linguagem, o essencialismo serve para
descrever as qualidades básicas de um objecto enquanto essas
qualidades forem necessárias à sua existência. Este argumento
pode levar a acreditar literalmente que um carro só é um carro
quando tiver um motor que funciona, porque essa é uma das suas
qualidades essenciais, de outra forma (se o motor não
funcionar),  perde a qualidade de carro enquanto meio de
transporte. O essencialista Wittgenstein garantiu-nos que a
filosofia coloca tudo à nossa frente, porém nada explica ou
deduz (Investigações Filosóficas, §126). A natureza
especulativa da literatura é, por esta via, absolutamente
anti-essencialista, porque tudo aquilo que o texto literário nos
coloca à nossa frente nos pede explicação e dedução. Só um
leitor circunstancial do texto se deterá na contemplação do
objecto lido, porque não o pré-ocupa o estudo desse objecto.
Para este tipo de leitor, a literatura é um conjunto de
essências que não precisam de ser explicadas — apenas fruídas.
Ora, a literatura não tem nada de essencial: nenhum texto
literário vive em estado de pureza, nenhum texto pode ser um
objecto intocável que se explica a si próprio — ou como é que
podemos saber que um texto se explica a si próprio se não
existir um leitor que tome consciência dessa essencialidade? —,
nenhum texto é inexpugnável — ou não havia pura e simplesmente
história da literatura. A literatura é uma arte
anti-essencialista, porque apela mais à descrição do que à
prescrição. Este pressuposto é válido quer para a literatura

grosso modo quer para a crítica da literatura. Contudo, nada
disto invalida a possibilidade de existirem escritores
essencialistas e críticos essencialistas.

 

4. [Pós-estruturalismo] Para certas teorias
pós-estruturalistas da literatura, o essencialismo é sobretudo o
pecado da limitação do sentido de um texto literário,
sobretudo quando se quer fazer acreditar que o sentido está já
dito pela intenção do autor do texto. O sentido do texto que é
assim determinado diz-se essencial, porque é o único que se
admite como verdadeiro na hermenêutica do texto. Uma posição
essencialista da literatura impede qualquer tipo de investigação
do sentido, porque ele já está pré-determinado. A interpretação
aberta de um texto literário está, neste caso, praticamente
proibida. Uma parte considerável da crítica pós-estruturalista
recusa esta perspectiva. Todo o anti-essencialismo é uma forma
de cepticismo, porque duvida da possibilidade de estabilização
do sentido. O anti-essencialismo na literatura não é uma forma
de niilismo, porque apenas se põe em causa a estabilidade do
sentido e não a sua existência. Uma coisa é afirmar que o
sentido é indeterminável em qualquer circunstância, como
reclamam alguns desconstrucionistas, por exemplo, numa atitude
niilista, outra coisa é asseverar que o sentido é indeterminável
num único acto de leitura, o que é uma atitude verdadeira e
dialecticamente anti-essencialista.

 

5. [Anti-humanismo] Também conhecida por anti-humanista,
a crítica anti-essencialista recusa tanto a determinação do
sentido como crenças mais gerais (não há uma natureza essencial
no homem, não há um ponto de partida na criação metafísica do
mundo — não há nenhum Deus criador, portanto). É frequente um
humanista ser acusado de essencialismo, quando defende que o
indivíduo é a única fonte de verdade possível e válida, quando
acredita que o homem é autónomo, auto-suficiente e
auto-determinado, por exemplo, Alan Sinfield (Faultines—Cultural
Materialism and the Politics of Dissident Reading
, 1992),
mas, de forma mais assumida,  primeiro em Frederick Mayer (Essentialism,
1952). Mayer já então defendia que o essencialismo era a crença
no homem, por isso propunha uma filosofia humanitária: "I
believe that the basic task of philosophy is to encourage na

awareness of humanity." (1952, p.5). Do ponto de vista
religioso, o essencialismo é um anti-fundamentalismo, porque
parte do princípio justo de que a religião é uma procura
interior e não um terreno sobre o qual detemos o direito
exclusivo de propriedade. Mas o que mais agasta certamente um
anti-essencialista não é tanto a inocente pretensão humanitária
como as tentativas de simplificação da cultura e das
instituições sociais que tal filosofia quer levar a cabo, com o
objectivo de promover a emancipação intelectual e espiritual do
homem. Está ainda hoje por provar que as simplificações ou a
redução das coisas complexas a meras ideias elementares por
todos entendidas contribuem para o desenvolvimento da humanidade
do homem. Para o que nos interessa, o essencialismo humanista
arrasta-nos para a crítica da subjectividade em literatura, para
as leituras puramente pessoais de um dado texto literário, sem
atender, uma vez mais, ao seu contexto histórico, como se o
homem fosse uma realidade fora da própria história que constrói.
Por outro lado, a simplificação da leitura crítica do texto
literário não é, a meu ver, a melhor didáctica para a sua
compreensão. Nem a simplificação do próprio texto literário
enquanto criação artística será directamente proporcional ao seu
valor epistemológico e histórico.

 

6.  [Estudos sobre as mulheres] Para as teorias
feministas contemporâneas, o conceito de essencialismo tornou-se
uma espécie de eco que todos ouvem, comentam, repelem, mas
raramente definem de forma explícita. De forma simplista, o
essencialismo feminista diz respeito à determinação da natureza
específica da mulher. Nas palavras de Naomi Schor, "essentialism
in the specific context of feminism consists in the belief that
woman has an essence, that woman can be specified by one or a
number of inborn attributes which define across cultures and
throughout history her unchanging being and in the absence of
which she ceases to be categorized as a woman." ("This
Essentialism Which Is Not One", in Naomi Schor e Elizabeth Weed,
1994, p.42). Desde o livro de Simone de Beauvoir O Segundo
Sexo
(1942???) que esta concepção universalista tem merecido
várias críticas. A tese de Beauvoir é a de que não se nasce
mulher, porque a mulher faz-se. Esta tese foi motivada
por ideiais marxistas que recusam a definição essencialista da
mulher, já que se trata de um conceito fabricado culturalmente
pelas forças opressoras do patriarcado.

O essencialismo feminista não é, pois, diferente do programa
humanista — se esta palavra não representasse tudo aquilo que o
essencialismo feminista mais ortodoxo deseja contrariar. Ora,
defende-se que este essencialismo feminino é uma visão masculina
da mulher, porque a vê como simples realidade biológica, porque
reduz a mulher a uma diferença biológica preconceituada: a
mulher fica limitada à sua função reprodutora, a mulher tem
limitações neurológicas, neurofisiológicas e endócrinas, a
mulher não tem a mesma capacidade física do homem, etc. O
essencialismo também pode jogar contra a construção de uma
verdadeira identidade da mulher quando esta for circunscrita
socialmente por razões naturalísticas: a mulher é
naturalmente
incapaz de certas funções por causa das suas
características morfológicas. E quando estas crenças se
generalizam, o universalismo torna-se também um caso de
essencialismo: as mulheres desde sempre partilharam determinados
atributos que as impedem de construir a sua própria identidade.

Outras
críticas do essencialismo feminista vão desde a famosa negação
de A Mulher, que Lacan demonstrou psicanaliticamente, até à
desconstrução de Derrida (Éperon), Irigary e Cixous, que
rejeitam a oposição homem/mulher feita dentro dos limites das
ilusões metafísicas ocidentais. Todos os anti-essencialismos
feministas carregam uma aporia do tipo: "if ‘woman’ is defined
as the being without na essence, where does that leave ‘man’ "?
(Robert Scholes, "Éperon Strings", in Naomi Schor e Elizabeth
Weed, 1944, p.127). Quer dizer, qualquer tentativa de negar a
existência de uma essência no homem ou na mulher deixa-nos num
beco sem saída para o sexo que estiver no lado oposto. O que é
que se ganha em afirmar a anti-essencialidade de um indivíduo
com o fim de afirmar a sua idiossincrasia? Na retórica complexa
dos discursos anti-essencialistas sobre feminismo, parece que
quem não tiver uma essência definida ganha a guerra dos sexos;
quem estiver  definido essencialmente, terá de suportar todo o
tipo de infortúnios culturais. Como bem observa Scholes, uma
tomada de posição anti-essencialista por um dos elementos desta
oposição binária entre sexos só faz sentido se se tiver em
consideração o elemento oposto. E se se quiser que não existam
essências em nenhum dos sexos, então o melhor é não utilizar
estes termos na discussão sobre estes idealismos sexuais.

 

7. [Estudos pós-coloniais] O termo essencialismo ganhou
também espaço nos chamados estudos sobre o pós-colonialismo.
Para simplificar os objectivos de um povo colonizador, fala-se
então numa única ideia essencial do que significa ser africano,
indiano ou árabe. Um movimento de libertação de um povo
colonizado dirá precisamente o contrário: é o colonizador que
pode ser reduzido a um essência fundamental. Salman Rushdie
define o essencialismo como "the respectable child of
old-fashioned exoticism. It demands that sources, forms, style,
language and symbol all derive from a supposedly homogeneous and
unbroken tradition. Or else" ("Commonwealth Literature Does Not
Exist", in Imaginary Homelands: Essays and Criticism

(1981-1991), 1991, p.67).

{bibliografia}

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Theory", in Jacqueline St. Joan e Annette Bennington McElhiney (eds.):
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Mayer: Essentialism (1952); Katherine Binhammer: "Metaphor
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Champagne: "Feminism, Essentialism, and Historical Context",

Women’s Studies: An Interdisciplinary Journal, 25, 1 (1995);
Teresa de Lauretis: "Upping the Anti (sic) in Feminist Theory",
in  Robyn R. Warhol e Diane Price Herndl (eds.): Feminisms:
An Anthology of Literary Theory and Criticism
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