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A renovação epistemológica do discurso histórico coincide com um novo interesse pela história que se manifesta há algumas décadas na literatura actual, marcada pelo movimento pós-moderno. Animado por um projecto colectivo de recuperação crítica de velhos temas, o pós-modernismo, entendido como “uma conjuntura memorial e estética” (Régine Robin, “Le roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors-lieu”, Thèse de doctorat, 3-e cycle, Paris, EHESS, 1989, p.200, caracteriza-se por um uso programático da narração e por uma verdadeira ressurreição da problemática histórica, tratada com uma liberdade nunca antes conhecida no âmbito da ficção. A prosa, sobretudo o romance, recuperou a história, no duplo sentido de conto e de narração histórica, resgatando-a da zona para-literária a que esta tinha sido relegada na primeira metade do século, e reinventou o romance histórico, reformulando as suas convenções e estratégias. O revisionismo histórico, praticado pela literatura, tem um duplo objectivo: requestionar as versões tradicionais da identidade colectiva e ao mesmo tempo tornar semióforos os espaços brancos do passado ignorados até aí pelo discurso histórico oficial.

Nas metaficções pós-modernas, o tratamento da história recorre a falsificações ou pelo menos ao tratamento crítico da tópica histórica tradicional, a ostentações do processo de fabricação discursiva da história como representação colectiva e como suporte do ethos de uma sociedade, a revisitações irónicas do thesaurus da memória cultural (convenções genéricas, motivos, topoi, repertórios de provérbios, de citações, mitos) e a desconfianças em relação às grandes narrativas.

A presença desta temática merece tanto mais atenção quanto o interesse pela história não foi constante no século XX. Depois da criação do romance histórico do século XIX que deificava a história, transformando-a em referência suprema de todo o discurso ficcional, o modernismo desenvolveu o discurso crítico em relação aos fundamentos epistemológicos da representação histórica, negando-se contudo, com raras excepções, a participar no fingimento generalizado do passado, instituído como prática legítima pelo discurso histórico. Os modernistas consideravam que era urgente rebelar-se contra a história que só  servia para “subverter as reivindicações do espírito à criatividade” (Hayden White, Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1978, p.31). Verdadeiro topos literário, o historiador era para os escritores da primeira metade do século XX “o guardião de uma concepção anacrónica da arte” (White, p.41), modelando o passado segundo cenários anacrónicos, cujo paradigma continuava a ser o romance realista do século XIX (White, pp. 42-43).

No que respeita a história, tanto a sua “modelação teleológica /teleological patterning/” como o seu “processo de fabricação” vieram a constituir matéria da ficção (Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism. History, Theory, Fiction, NY and London, Routledge,  1988, p.87). Os artistas pós-modernos compartilham as mesmas dúvidas que a reflexão epistemológica actual (v. sobretudo Michel Foucault, L’Archeologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969) sobre a capacidade da consciência humana de instituir uma história racional, centrada no sujeito, sobre a possibilidade de uma  história global como sistema dinâmico evoluindo organicamente em direcção a uma finalidade escatológica, e sobre a própria existência de uma história fora de um discurso efémero e sempre substituível, porque vítima da própria historicidade. A história já não pode ser concebida como discurso do  contínuo, do idêntico, mas é o próprio espaço da dispersão. A descontinuidade tornou-se uma hipótese sistemática, a história constrói-se por séries que privilegiam os objectos marginais, outrora desconsiderados pela história oficial. A história é o mesmo que o discurso que a toma como objecto e não pode existir fora dele. Como todo o discurso, também o histórico está impregnado pelo imaginário e utiliza tanto mais estratégias de ocultação do seu modo de fabricação e das motivações pulsionais que o engendraram quanto se pretende um discurso objectivo e puramente factual. As fontes sobre o qual se edifica são elas próprias o resultado de um jogo do poder, jogo de ostentação/ocultação que é preciso despedaçar. O conhecimento histórico é parcial e selectivo e deve ser alargado em direcção às zonas que a história canónica se esforçou por apagar. É ilusório acreditar que possa haver uma identificação possível com as subjectividades do passado, o fingimento deve ser abandonado a favor de um reconhecimento honesto de que se fala a partir do presente e de que o passado considerado não existe por si próprio, mas é aquele que este presente construiu para o seu próprio uso e em função de desejos e intenções muitas vezes inconfessáveis.

O que estava errado na modernidade – diz Terry Eagleton – era a convicção de que a História estava já moldada numa matriz predeterminada Terry Eagleton (The Illusions of Postmodernism, Mass., Oxford and Cambridge, Blackwell Publishers, 1996, p.31). A pós-modernidade, obcecada com a mudança, a mobilidade, a instabilidade, os finais abertos open-endedness Idem, p.34, não recusa a história, mas a História, a ideia de que existe uma entidade chamada História de sentido e finalidade imanentes Idem, p.30, que constituiria o predicado de um sujeito unificado, que teria atravessado inalterado a história. A reacção contra tal modelo “humanista” da história articula contudo uma variedade de atitudes epistemológicas contraditórias que vão da concepção tradicional sobre a História como encarnação de uma intriga (a metanarrativa do progresso, as metanarrativas de emancipação, marxista ou identitária) à concepção do passado como caos de factos brutos, destituídos de intriga, que se deixam manipular e usar à vontade por qualquer ideologia política. Algumas ficções afastam-se da história canónica ao nível dos factos históricos reais, aderindo porém à concepção padrão da história como processo racional e télico. O objectivo é afirmar a contingência da história: o curso dos eventos não é inevitável, donde o potencial politicamente subversivo em relação ao presente: mudando a história, demonstra-se que o presente também pode ter sido outro e continua a ser aberto à mudança. Outras ficções destroem a lógica elementar dos acontecimentos, a história não é um processo ordenado e dotado de sentido, mas é um carnaval, uma mascarada que conjuga uma profusão de elementos díspares, prontos a qualquer momento a se deixarem integrar numa metanarrativa mistificadora. O eclectismo sublinha a vulnerabilidade da matéria histórica à instrumentação política, incutindo uma imagem niilista e radical sobre as res gestae, a substância imutável da história.

Do ponto de vista genérico há uma hesitação quanto ao inscrever de modo resoluto as várias «adaptações romanescas da matéria histórica» E.Wesseling, Ob.cit., p.VII.dentro da série genérica aberta pelo romance histórico clássico. Rotulados de forma diversa, desde «romance histórico apocalíptico» a «romance histórico paródico» (Cf. Barbara Foley, “From USA to Ragtime: Notes on the Forms of Historical Consciousness in Modern Fiction”, in: American Literature, 1978,  nº 50, pp.80-104), nos últimos anos acabou por impor-se o nome genérico de metaficção historiográfica, proposto por Linda Hutcheon, L. Hutcheon (Ob.cit.), que tem a vantagem de salientar os dois aspectos fundamentais desta ficção: por um lado o seu carácter metadiscursivo e pelo outro a sua relação à historiografia. Ao passo que o romance histórico clássico, -“ uma intriga que desliza nos interstícios da história (J. Le Goff, “História”, in: Enciclopédia Einaudi, Vol.1: História,  INCM, 1997, p.180) -, ocultava o seu carácter de discurso modelizante secundário (o facto de ser um discurso construído a partir e sobre um outro discurso: o histórico), cultivando, aliás como a história sua contemporânea, a utopia do acesso directo ao passado, a metaficção historiográfica contemporânea reconhece a sua secundariedade pondo em causa simultaneamente a historia rerum gestarum e as res gestae, a primeira como genealogia discursiva, as segundas como genealogia de “efeitos do real” produzidos pela sucessão dos discursos historiográficos. O conceito central, segundo Hutcheon, é a “presença do passado”, muitas vezes realizada sob a forma da narrações históricas paradoxais, cujo traço comum é a tentativa de instituir uma relação dialógica entre o presente e o passado que pretende, como diria Halbwachs Cf. M.Halbwachs (La mémoire collective, Paris, 1968), substituir a memória-mensagem por uma memória-diálogo.

Na metaficção historiográfica, existe uma “recusa deliberada de resolver as contradições” (L. Hutcheon, Ob. cit., p. IX), desígnio de todas as metanarrativas, e uma permanente tentação paródica que denota a recusa de aceitar as respostas tradicionais às grandes perguntas humanas e a escolha deliberada de uma interrogação permanente que rejeita a certeza tranquilizadora da doxa. É uma arte não só paródica, mas didáctica porque possibilita o diálogo individual e criativo com a história, oferecendo as maneiras de se constituir uma identidade própria, altamente idiossincrática a partir das possibilidades não-actualizadas no passado e porque, ainda, desperta nos leitores a necessidade de comparação crítica com a história, o que leva a uma consciencialização dos embustes do discurso científico e a uma tomada de posição perante a doxa vigente. A literatura pós-moderna é “um ludismo, uma reinterpretação da História sem ordem e sem hierarquia, sem metanarração, diria Lyotard, uma ficção que parodia, que ficcionaliza a história em modos de escrita que não temem o regresso às convenções” (R. Robin, Ob.cit., p.203). O pós-modernismo é “fundamentalmente contraditório, decididamente histórico e obrigatoriamente político” (L. Hutcheon, Ob. cit., p.4) – “What I want to call pm. is fundamentally contradictory, resolutely historical, and inescapably political” – , caracterizando-se por isso por uma perspectiva descentrada que reabilita e recupera para o domínio literário “o marginal e o ex-cêntrico (do ponto de vista da classe, raça, sexo, tendência sexual, ou origem étnica)”, o que implica o reconhecimento da evidência que “a cultura em que vivemos já não tem aquela homogeneidade monolítica que tradicionalmente tínhamos assumido” (L. Hutcheon, Ob.cit., p.12).

O tipo mais inovador de metaficção historiográfica em relação ao romance tradicional é representado pela ficção contrafactual que consiste na  “falsificação aberta da história” em narrativas que alteram o curso dos acontecimentos, tal como este foi estabelecido pela investigação histórica. Segundo Brian McHale, esta modificação do próprio acontecimento, patente na literatura actual, e já não apenas da interpretação sobre ele, como na época anterior, marcaria uma mudança de paradigma. Ao passo que o modernismo tinha uma dominante epistemológica, o pósmodernismo teria uma dominante ontológica: “levadas suficientemente longe, as interrogações epistemológicas convertem-se em interrogações ontológicas” (Brian McHale, Postmodernist Fiction, London and NY, Routledge, 1989, p.11) e transformam em matéria de experimentação as próprias res gestae.

A ideia básica sobre a qual assenta este tipo de ficção é a de que qualquer situação histórica implica uma multidão de possibilidades divergentes que excedem/transbordam o curso efectivo dos acontecimentos. Sob este ângulo, o progresso da história apresenta-se como um desgaste  não só de vidas humanas, mas de opções e oportunidades, uma vez que a escolha de uma única possibilidade supõe necessariamente a eliminação das outras alternativas. As histórias contrafactuais são deste ponto de vista outras tantas tentativas de recuperar as possibilidades perdidas e a história no seu todo (real e potencial) apresenta-se como um labirinto de sendas que se bifurcam segundo a sugestiva metáfora de Borges.

“O procedimento poético da hipótese”, que, segundo Douwe Fokkema (History, Modernism and Postmodernism, Amsterdam, John Benjamins, 1984) constituía a principal característica da prosa modernista, passa a ser aplicado,. na ficção pós-moderna, já não à possibilidade, mas à impossibilidade: As virtualidades do passado, impossíveis porque na realidade abortadas, são actualizadas na ficção contrafactual, e contadas como realmente tendo havido lugar. Trata-se aqui de uma “estratégia de desmascarar a construção ficcional do passado” (E. Wesseling, Ob.cit., p.5) pela construção de um cenário apócrifo que desenvolve as virtualidades adormecidas na história, desdobrando-a em mundos futuros alternativos (utópicos ou distópicos). Elisabeth Wesseling prefere por isso chamar a esse tipo de ficção “fantasias ucrónicas” (Idem, p.102), sublinhando por um lado o parentesco destas fórmulas romanescas com o pensamento utópico, gerador tanto de cenários eufóricos como disfóricos e pelo outro a dívida que tem este género, já de si misto, para com a ficção científica. Ao passo que o romance histórico emprestou à ficção contrafactual «o assunto da história colectiva e as estratégias para vivificar o material histórico», a ficção científica contribuiu com «o modo utópico e as estratégias para alterar um conjunto de circunstâncias e para deduzir um modo alternativo baseado nas mesmas premissas por meio de um modo de raciocínio hipotético-dedutivo. Idem, p.105

As narrativas ucrónicas alternativas costumam normalmente seguir passo a passo a história real, sistematicamente oferecendo alternativas para cada ponto nodal do tecido dos acontecimentos históricos reais e apresentam um carácter marcadamente paródico porque incorporam e reciclam, com uma diferença irónica, materiais textuais «pré-fabricados», de que o leitor deve ter um conhecimento prévio se quiser compreender o texto na sua dupla dimensão: textual e intertextual.

O alvo das paródias pode ser uma obra única, claramente identificável, ou um grupo de textos, um género ou qualquer forma de discurso codificado. O texto parodiado não é simplesmente repetido mas modificado por várias estratégias: pastiche, recontextualização, atribuição de sentido contrário, condensação, expansão. A ficção contrafactual cria incongruências irónicas introduzindo figuras e eventos históricos em sequências ficcionais alternativas ou personagens de ficção em sequências históricas minuciosamente descritas pela historiografia. O alvo principal do discurso irónico é a história canónica, o repositório de factos estabelecidos e as interpretações daqueles factos, mas também os textos do passado/da memória cultural, maltratados por um uso contrário ao tradicional, de acordo com Wesseling (Ob.cit., p.106).

Estas reescritas do futuro do passado a partir de uma possibilidade histórica não-realizada comportam uma dimensão profética e, apesar do seu discurso irónico, manifestam um projecto de emancipação. Uma dimensão essencial do modelo hipótetico de construção do mundo possível da narrativa é a intenção pedagógica de corrigir a história. Como num palimpsesto, à história real (imperfeita) sobrepõe-se uma história fictícia modelar que funciona como instância de julgamento das decisões dos actores da história.

O paradoxo que este tipo de ficção revela à consciência é o facto de que a história fictícia, virtual, pertence tanto como a história real ao passado e sobretudo ao presente. A narração tem implicações cognitivas próprias, impõe uma forma à realidade histórica antes de esta se tornar objecto da representação histórica. O efeito simultaneamente concurrencial e pedagógico da ficção contrafactual em relação à história assenta no facto de que a narrativa cria um efeito de referência graças à sua capacidade de redescrever a realidade (Paul Ricoeur, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique, II, Paris, Éd. du Seuil, 1986, p.221), colocando entre parêntesis as representações prévias da mesma realidade. Segundo Ricoeur, o paradoxo da ficção, que contradiz a tradição platónica (a imagem como sombra da realidade) consiste no que François Dagognet chamou o efeito de augmentação icónica: todo o ícone representa um grafismo que recria a realidade a um nível superior (Écriture et iconographie, Paris, Vrin, 1973, citado por Ricoeur, Ob.cit, p. 222). A augmentação icónica procede por abreviações, condensações e articulações (P. Ricoeur, Ob.cit., p.220), que constituem modelos de alto valor heurístico, semelhantes aos produzidos pela ciência: “O traço comum ao modelo e à ficção é a sua força heurística, isto é a sua capacidade de abrir e desdobrar/déployer/ novas dimensões da realidade, suspendendo a nossa crença numa descrição anterior.” (Idem, p.221). Esses modelos hipotéticos representam sistemas em que se intervém (são postos em movimento), para serem verificados (validados ou refutados) pela falsificação. Aplicado aos mundos alternativos que a ficção contrapõe à história, o critério da falsificabilidade (trial and error) elaborado por Karl Popper (La Logique de la découverte scientifique, Paris, Payot, 1978), para a ciência, funciona de forma igual. Ao elaborar histórias alternativas, a literatura torna-se assim um teste da própria História (Hayden White, “The Question of Narrative in Contemporary Historical Theory”, in: M. Currie, Ob.cit, p.122), revelando o carácter construído da factualidade histórica e da sua interpretação.

É patente na metaficção historiográfica o papel activo que é atribuído ao leitor na produção do sentido. Entre o horizonte da história “real” que o leitor conhece através dos vários dispositivos culturais e a história possível que a ficção lhe apresenta abre-se um espaço de liberdade em que ele põe à prova a sua própria capacidade de modelação/remodelação dos sistemas simbólicos adquiridos. Como leitor de ficção, o consumidor da história torna-se consciente da impossibilidade de nós alguma vez podermos conhecer o passado como referente, ou nos termos de Jameson, como objecto último (ultimate objects). O passado é incorporado e modificado pelo presente, recebe uma nova significação e só assim é que chega à nossa consciência. O que percebemos do passado não é a sua lógica interna, a narrativa dos acontecimentos tal como eles sucederam, mas estamos sujeitos aos efeitos do que Gadamer Hans-Georg  chamava a história da eficiência: tudo o que os vários discursos interpostos entre nós e o passado fizeram dele e de nós(Vérité et méthode, Éditions du Seuil, 1976, p.140) . Ao tentar perceber o passado, nós não somos um receptáculo passivo do discurso que pretende revelá-lo, mas participamos activamente na releitura/reescrita da história, por um processo de aplicação (Idem, p. 148) – conceito que Gadamer recuperou da retórica barroca -, ou seja, aplicamos o discurso recebido (em grande medida uma congérie de preconceitos e pre-conceitos) às circunstâncias peculiares da nossa existência: revivemos o passado através da nossa experiência, tornando-o assim matéria da criação da nossa identidade, já não tanto colectiva como individual.